domingo, 20 de novembro de 2011

CONCORRÊNCIA

Eu estava de pé no ônibus, segurando o ferro da parte superior. Reparei que entrou um indivíduo – meio gordo, nem tão frágil – distribuindo os seus papéizinhos. Ele insistiu, eu segurei um também. No papel um texto mal escrito dizia que ele era deficiente e que necessitava de ajuda. Ele foi até o final do coletivo e, voltando até a parte da frente, começou a recolher os bilhetes de miséria.
Nesse momento o ônibus parou, abriu a porta de trás e subiu outro indivíduo rastejando, sem as pernas e com um braço, apenas. Fez um discurso de miserável otimista que dizia que “o pouco, com Deus, é muito” e recebeu todas as atenções e todas as esmolas do coletivo.
O primeiro desceu desapontado e eu não dei um tostão a ninguém.

(Marcos Cruz)

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

JUSTA MOTIVAÇÃO

A Fabrício Saadi Pagani

A polícia chegou a tempo, antes que a confusão tomasse proporção incontrolável. Era um feriadão prolongado e a movimentação estava caótica na Rua da Lama. Foram acionados, porque o cara barbudo queria bater no outro, o de colar de sementes. A discussão começou porque o segundo teimava que a parte do "Espírito Santo" se fazia da direita para a esquerda. Diz-se que nenhum deles era católico.


(Marcos Cruz)

domingo, 18 de setembro de 2011

Saco um samba sintomático
falo afoito facas em frisson.

Não me venham com teologias quando eu
tiver batido a cabeça na quina do armário;
não me venham com filosofias quando eu
tiver dado uma topada com o dedo mínimo do pé
                 na quina da parede;
o dedo sangra, o dente dói.
Respeitem a anestesia da autopiedade!

Saco facas em frisson
falo afoito um samba sintomático.

(Marcos Cruz)

domingo, 28 de agosto de 2011

"Se o poeta falar num gato, numa flor,
(...)
Se não falar em nada
e disser simplesmente tralalá... Que importa?
Todos os poemas são de amor!"

(Mário Quintana)

Quando eu te quis falar de amor
no meu inverno inverso
do Quintana dos infernos
emergiram remoídos estes versos:

“Tralalá, meu amor,
eu vi um gato.”

(Marcos Cruz)

sábado, 27 de agosto de 2011


Se o meu verso fosse
verso de aêdo,
eu renunciaria à metáfora;
mas, como que por medo,
submeto-me à anáfora;

poesia é flora em fogo:
verde que arde em chamas
e chagas
que se abrem em flores
de múltiplos sabores
sucumbidas pelo calor
que tudo subjuga em cinza;

cinza que cobre a terra após o incêndio
é o verso parido pela maiêutica do grafite.

(Marcos Cruz)

segunda-feira, 22 de agosto de 2011


Ao pé da noite serena
a Lua derrama seu halo
sobre mar do Atlântico
tão escuro;

da praia de Itaparica,
o luar todo enternecido
diluindo-se apaixonado na água:
ele a penetra (e a atravessa até o chão;

mas, enquanto ocorre a decantação,
o fluido prateado contraria a
precipitação
fatalista: expandindo-se
feito fogos de artifício que se acendem
desde as ondas);

essa luz é volátil refletida
qual o desejo.

(Marcos Cruz)

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

SAUDADE


Àquela noite enluarada
(quando, no meu peito, se fez dia)
você me poupou de sua luz dourada,
mas não me privou da flor da poesia.

(Marcos Cruz)

SOLO


Detesto a solidão
     ;

amo, vejais, ser em andorinhas
ou pardais:
na altura do céu azul em edifícios
vidraças ou metais;

eu detesto a solidão
noentanto estou só
cá no meu quarto
cá no meu canto
sob o soturno manto
de aqui dentro de mim;

(quando a vida perecer
só nos resta de legado
amor ou melancolia;

isso eu afirmo porque
a brisa ou o sol do dia
não pode ser capturado,

guardado com avareza
ou então acumulado,
se a visível natureza
colore-se em céu nublado;

a brisa é fluida e vadia
o sol é imenso e vário;
é natural que a poesia
seja um soneto ao contrário)

eu não estou só
                       - constato -
nem mesmo no silêncio do meu quarto,
e nenhuma emoção
nasce de introspecção;

todo o que digo
tudo o que sei
é nuvem e brisa e sol
e dor e trago que herdei:
a flor dos olhos sonâmbulos
entorpecidos pela claridade
da certeza
que em minha testa brota;

a miragem do concreto que
cerra minha carne, mas
declina ante meu gemido;

a dor em minhas costas
subjugadas pelo peso
do tempo que exaure meus ossos,
presente do antes e do depois;

o que julgo meu sopro
desejo ou idéia, pois,
(que supostamente nasce)
revela-se, descartando o enigma,
deliberação d'uma assembléia
composta por vozes milhares
sob o semblante solitário
de minha face.

(Marcos Cruz)

segunda-feira, 15 de agosto de 2011


Eu abro meus ouvidos no silêncio
buscando um canto de sereia
que seduza a náusea do indistinto.

Eu fecho os olhos do frio
que em minha sombra sopra
a busca pela cor da distância
do que não tem nome.

Escorrem lágrimas do meu peito
por não reconhecer o feito, cuja
cadeia selada da indignidade
mata.

Observando, sob a modorra do retrocesso,
a dolorosa morte de inventivos processos
durmo o sono do dia a dia
e, se desperto, canso
e volto manso para a covardia de não querer.

(Marcos Cruz)

domingo, 14 de agosto de 2011


Leio no silêncio no meu quarto
como medita um monge

que junta as palmas das mãos
em frente o peito, na altura do coração:
na mesma altura que o livro repousa
sob meus pensamentos;
os olhos curvados num ângulo
de 45°
como os do monge na direção
do chão, direção
que busca o vazio
gashô.

Divirjo, pois, do monge
(mesmo que busquemos mesmo o
nirvana)
porque o meu zazen
não é silêncio:
encontra, em contrário,
gritos num plenário
da multidão de vozes
circunscritas no espaço do tempo
pelo qual minha visão é levada
ao encontro do coro polifônico
de em mim.

(Marcos Cruz)
Agonizo em peitos insalubres,
é a vida arquitetada em rede
moinho que não cessa.

Eu planto em terra infértil
na esperança de mil orquídeas;
enquanto elas não nascem
teço.

(Marcos Cruz)

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Girassóis floreiam em mim
do seu sorriso;


luzes voláteis interpenetram
               os meus pulmões
sufocado pela concentração
de um êxtase que me revela
o quanto é preciso destruir da
           imagem de quem amo
                 para que lhe ame.

(Marcos Cruz)

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O jeito com o qual amo
não provoca nenhuma surpresa;
dance comigo uma música bem calma,
caso desejes me amar.

A beleza lúcida dos teus lábios rubros
pode lapidar minha pulsão empedernida,
na mesma medida da discrição dos pássaros
quando despertam a manhã com a garganta.

Desejaria voar contigo e passarear
um amor de calopsita,
mas no alto dos prédios da cidade
brotam relvas teimosas pela vida.

A luz da paixão idealizada
cega os meus olhos descrentes,
Cobilândia de outrora!
                                 lugar
onde não mais vivo, mas - se não vivo -
é vivo dentro de mim

como é viva a lourinha que amei
na terceira série
(embora esteja ela morta
para dar lugar à supervisora do supermercado).

- Desejo calabresa; não demore que ela não tarda.
- Sim, senhor.


(Marcos Cruz)

domingo, 31 de julho de 2011

Não te mostrarei meus
medos
enquanto os meus
enredos
forem cantar
contar
       calar
cantar contar o número
dolorido e cabal
de lírios do jardim
colorido
que murcharam sem
carnaval.

(Marcos Cruz)

domingo, 24 de julho de 2011

Forço e faço fogo fulguroso, é fagulha
notória nata natural; mas natimorta
é a poesia paternal patética; pois o poeta
canta comovido, enquanto a corsa
balbucia bucolismos em sua busca. Se o braço
rema rigorosamente pelo regaço; restringe, pois,
a água espessa, o amor que se abrasa. Arrefeço.

(Marcos Cruz)

sexta-feira, 22 de julho de 2011

NESSE JULHO

"O trabalho era atrapalhado, às vezes desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo." (Bentinho/ Machado de Assis)

A minha vida não tem mais cores.
Eu as tive, mas perdi do momento
de sua partida.

Se me vejo
me retrato em preto e branco;
se não velo
a imagem de mim é todo escuridão.

Eu não tenho mais cores
(flores, amores; nem rimas
porque, sem dores, é única
a dor).

Vai-te, enfim, acácia de Angola;
que o fardo subjuga o burro
e já já me nauseia sua alma multicor. 


(Marcos Cruz)

domingo, 10 de julho de 2011

Nestas noites frias
de atividades baldias
escrevo em silêncio.
Saudade daqueles dias
eupeterpan: alegrias.

(Marcos Cruz)
Manhãfria de céunublado
monotonia
de umavida sem zeithgeisth.

(Marcos Cruz)

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Fica a vida cinza
vento frio, vento sul.
Julho não tem dó:
o céu prata esconde o sol
cerrando-me o arrebol.

(Marcos Cruz)
Fica a vida cinza
vento frio, vento sul.
Julho não tem dó:
vento frio vem do sul
pra ser quente em minha pele.

(Marcos Cruz)

terça-feira, 5 de julho de 2011

TANKA

Fica a vida cinza
vento frio, vento sul.
Julho não tem dó:
esse mês sem coração
gela quem dorme no chão.

(Marcos Cruz)

sábado, 2 de julho de 2011

Julho é um mês tão belo;

pena que não seja um poema
só dizer que julho é belo,

belo
pelo frescor que cobre os dias
e pela cor do céu que prateia
o mar.

Eu gostaria que o nosso primeiro
encontro tivesse acontecido em julho;
mas quando foi mesmo o nosso
primeiro encontro?

Em julho os burgueses se refugiam
em Domingos Martins
enquanto que eu não saio da beira
do mar.

Ah, quanto me custa, Deus, para obter
a graça de um poema cuja poética seja julho?
Quanto me custaria um poema no qual coubessem
todas as minhas dores?

Não importa o mês do nosso primeiro encontro,
importa que nossa primeira noite de amor
foi em novembro,
eu lembro.

Em julho,
o frio ameno não é tão atônito
ante o meu semblante moribundo,
as roseiras também florem sob o
céu grisalho;
mas eu quero mesmo é uma tempestade
que enchente o meu vazio.

(Marcos Cruz)

sexta-feira, 1 de julho de 2011

terça-feira, 28 de junho de 2011

Banho tomado junto é
peça fraternal do mais íntimo contato.
Quando de água e de carícias ensopado
meu banheiro corpo água
corpo espuma água corpo
 corpo corpo.

Quatro mãos lavam dois corpos
e, sob a doçura do mais intenso possuir mútuo,
a espuma escorre dos cabelos pelas
barba pescoços seios barrigas virilhas joelhos.

Tudo é morno e úmido
como um útero
para quem se banha em água
que tem a espessura do afeto.

(Marcos Cruz)

domingo, 26 de junho de 2011

PEDRA

Eu gostaria de ser esta pedra
ah, como me agradaria sê-la.
Um pedregulho que não sente nem pensa
e não existe, portanto, no eusser
da pequeneza cartesiana.

Tão somente send'eu a pedra
não me haveria cisco nas retinas
nem fadiga em arrancar cotidianamente
                       a pedra do meu sapato.

É de nojo e niilismo que termino
esse poema,

porque não há dentro de mim
                                pedra
                       sobre pedra.

(Marcos Cruz)

sábado, 25 de junho de 2011

Se deves recolher rosas
com espinhos,
comemora!
Há quem as tenha visto antes;
mas que, por medo,
fosse embora.

(Marcos Cruz)

sábado, 18 de junho de 2011

TRÉPLICA

Eu não quis ser o seu
dominador, nem seu amor
nem nada mais;

meu crânio comprimido
nunca te pediu
confirmações;
meu peito esbaforido
nunca te pediu
promessas;

confesso que tive em ti
uma dona
e me agradaria ser cuidado
tão somente um tão pouco,

ter sido seu
bichinho de estimação.

(Marcos Cruz)

sexta-feira, 17 de junho de 2011

RÉPLICA DE IAIÁ



O
que falo me contenta?
O
que falo me supre?
O
que falo me faz plena?
Pergunto do
que falo
porque sabes bem que
eu nunca te fiz
promessas.

Sou a mulher que não é musa
nem nunca seduziu ninguém;
só procuro por outra carne
por ser de carne
e, enquanto a carne se sacia na carne,
também eu me sacio.

Eu não faço juras de amor
porque não amo ninguém
caso contrário o faria;
quanto a tu, não digas me amar:
se me amas, venha sofrer as regras ou parir
em meu lugar!
Quando isso for possível
aí eu acreditarei em amor...

O teu espanto
é o teu machismo,
insensato protótipo de reprodutor,
- já que, às vezes, mal é capaz de
prover a própria prole –
porque nunca esperas
ser devorado pela própria presa.

Eis que não sou presa,
nem me prendo: sou
arara que alça vôo sem amarras;
peixe que mergulha em mar ressaqueado;
paca que se embrenha em mato denso;

arara peixe paca
peixe paca arara
paca arara peixe

julgas-te pescador?
julgas-te caçador?
julgas-te passarinheiro?
se o fosses, eu de minha vez
seria a tempestade.

(Marcos Cruz)

Tinha um gato gatuno
que vivia na casa de Iaiá

e de seu banho se lambia todo
como eu lambia lentamente
o corpo moço de Iaiá

e no canto da sala adormecia
contorcido
como eu me contorcia
noite a dentro noite fria
pelas pernas de Iaiá

e seu miado faceiro
véspera do afago lisonjeiro
que o corpo todo alisa na pele alheia
como os nudos afagos que eram de Iaiá.

Mas Iaiá é uma rata
tal qual cadela no cio
que não ama um homem só.

(Marcos Cruz)

quarta-feira, 15 de junho de 2011

De minha pele desprendem-se
bolhas de sabão que pelo vento
trafegam na direção dos seus olhos
irritando-os
e
eclode, pois,
no toque com seus cílios
o desenho de mim
que mostra a intensidade
com a qual
te pertenço.

(Marcos Cruz)

sexta-feira, 3 de junho de 2011

NAS CANCELAS DA TERCEIRA PONTE

Eu sou quinhentos,
sou quinhentos-e-cinqüenta.

Eu sou quinhentos,
sou quinhentos-e-cinqüenta
espremidos no 507.

Eu sou quinhentos,
sou quinhentos-e-cinqüenta
reprimidos pela polícia.

Eu sou quinhentos,
sou mais de quinhentos
quando minha garganta se solta
sou três-mil-quinhentos-e-cinqüenta
fechando ruas e abrindo caminhos
exprimidos num grito de revolta.

(Marcos Cruz)

quinta-feira, 2 de junho de 2011

BEIRA MAR

O branco da
onda se espalha
pela areia.

Olhos fixos para o
verdeazul
e entendo que o mar
está agitado porque faz março
no meu peito.

Tento, inutilmente,
pensar num verso
mas me lembro que
um ilustre português
já comparou o sal
das lágrimas com o sal
do mar;

e, em silêncio, me queixo
como se queixa um menino
a morte de seu passarinho.

(Marcos Cruz)

quarta-feira, 1 de junho de 2011

EPITÁFIO

Meu verso é híbrido
meu verso é líquido
               é sangue.
Tristeza que dilata o riso
            que dói.

Meu verso é parnasianossimbolista comedido
é dadaíst'expressionista meio desequilibrado
meu verso é cubistaconcreto zulejado e rejuntado.
Meu verso é modernista
                           à pós.

Jaz aqui por isso mesmo
a nomenclatura do meu verso;
eia, pois, a forma do meu desejo.

(Marcos Cruz)